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3 de nov. de 2010

Crônica - A pasmaceira mulher - Antonielson Sousa



Não importava as condições do tempo, ainda que diante de um sol escaldante ou debaixo de muita chuva, lá estava a mulher carregando um saco branco na mão direita e uma vara, usada como um cajado, na mão esquerda.
Todo santo dia, no mesmo horário a mulher de cabelos pretos, roupas desgastadas pelo tempo, atravessava a Rua Iminéia, como se fosse a última coisa a ser feita. Eu a observava pela janela de casa e tentava descobrir o que de fato ela procurava.
Em vão foram minhas tentativas, como observador. Não encontrei uma só resposta consistente. Aquela senhora apelidada por várias vezes de Sara pelos adolescentes que a importunavam, era muito enigmática. Rusticamente complexa. Nunca ouvi-a dizer uma só palavra. Apenas caminhava e caminhava.
Era uma quarta feira. Eu lia a MEGERA DOMADA de William Shakespeare. Ao folhear uma página, dei meus olhos no relógio pendurado na parede do meu quarto. 08h45min. Pulei da cama, sobressaltado. Não pensei que fosse tudo isso. Exatamente às nove horas a mulher atravessava a Rua Iminéia, e eu queria muito acompanhar seus passos.
Debrucei-me sobre a janela de casa, esperando Sara despontar na rua. Não demorou muito. Lá estava ela. A mesma pasmaceira de sempre. Uma sórdida rotina. Pensei. Naquela quarta feita, pela primeira vez, decidi segui-la. Ela tinha passos largos e andava sempre de cabeça baixa, como se estivesse atrás de alguma coisa pelo chão. Na verdade, descobri que ela procurava comida e que sua sacola sempre voltava cheia, no fim da tarde. Pão estragado e sobras de carnes. Sua preferência.

Aquela quarta feira foi o dia que mais andei na minha vida. Já era 13h35min. Vi no relógio da padaria, próximo ao mercado da cidade. E nada de comida. Esperava que Sara tirasse os restos de comida da sacola e comece, mas ela não fez nada disso. Surpreso, foi como eu fiquei ao passar pela rua do mercado. Sara tinha simpatizantes. Pessoas que se comoviam com sua situação. Todos os dias ela comia e recebia algo em torno de 5, 6 reais. Depois, seguia caminhando.
Eu não tinha certeza, mas já passava das quatro horas da tarde. O fim do percurso de Sara. Ela em fim chegou à sua casa. Pela primeira vez eu a vi olhar para trás. Constatava se não estava sendo seguida. Permaneci sereno e bem dissimulado, atrás de um carro.
Antes de adentrar em sua casa, Sara foi até a janela da casa ao lado. Empurrou-a e jogou tudo o que tinha na sacola. Naquele momento eu ouvi os latidos. Eram cães por todo lado. Famintos. Descobri que seus donos a dias saíram e ninguém teve mais notícias deles, deixando os pobres cachorros entregues à sorte. Pelo menos tinham Sara. A velha senhora que os mais jovens perseguiam e debochavam, possuía na verdade um espírito nobre. Assim imaginei.
Em seguida, a pasmaceira mulher entrou em sua casa. Ficou ali por uns vinte minutos. Quase fui embora, mas minha curiosidade persistiu bravamente. Sara então saiu com outra sacola na mão. Imaginei se tratar de outro banquete para os cães, mas não. Ela caminhou até o banheiro do mercado. Permaneceu sentada no banco, próximo a entrada do banheiro, até ter certeza de que não havia ninguém além dela. Ao certificar-se que não havia ninguém, entrou no banheiro.
Fiquei esperando ali por quase quinze minutos. Quando uma mulher totalmente diferente de Sara saiu do banheiro. Esfreguei meus olhos, pensando estar já vendo coisas, possivelmente pela fome. Mas não. Fiquei de guarda ali e não vi ninguém mais entrando no banheiro. Era ela mesma. Uma mulher bonita. Nada parecia com aquela mendiga. Então quer dizer que ela engana todo mundo. Pensei introspectivamente. A mulher andou por mais algumas ruas, até chegar a uma parada de ônibus. O primeiro ônibus que chegou, ela subiu. Fiquei de boca aberta. A sacola ainda permanecia em sua mão. Mas porque tudo isso?
Confuso e curioso diante de todas estas descobertas, eu decidi retornar até a casa de Sara. Não sabia exatamente porque, mas queria descobrir alguma coisa.
Logo que cheguei em frente à porta da casa de Sara, tropecei na calçada mal feita e dei com as mãos no tapete. Ainda bem que ninguém viu. A rua também é quase deserta. O tropeço me fez ver onde Sara colocava uma cópia da chave de sua casa. Embaixo do tapete. Por um instante pesei se deveria entrar ou não na casa. Claro que não, era a resposta. Mas eu tinha ido longe demais para não ver o fim de tudo, ou pelo menos tentar.
Olhei para os dois lados da rua. Não havia ninguém. Decidi então entrar.
A casa de Sara era de poucos móveis. Quase nada. O básico dos básicos. Mas um detalhe intrigante me entorpeceu. Em um dos quartos havia muitas folhas sobre uma mesa. Havia também um livro aberto. Guerra e paz. Um romance de Tolstói. Fiquei incrédulo com tudo. Como alguém pode se passava por mendigo, catando coisas na rua, alimentar cachorros abandonados e ao mesmo tempo ler Tolstói.
Fiquei por alguns segundos meditando no desenrolar da vida da pasmaceira mulher, que de pasmaceira não tinha nada. Peguei o livro ainda com enlevo. Abaixo do romance estava uma planilha feita a lápis, contendo inúmeros valores. VERONIKA KEROLAINE. Era o nome verdadeiro de Sara. Sua identidade sobre a mesa me confirmava o que estava escrito na planilha. Saltei da cadeira, estupefato, ao ver o total. Dinheiro em caixa: R$ 78.529,12. Como ela havia juntado tudo aquilo eu não sabia, mas que era surpreendente não havia dúvidas.
Peguei um calendário todo rabiscado que também estava sobre a mesa. Uma data se destacava de todas as outras. 11 de dezembro. Sublinhado de três cores diferentes. Azul, vermelho e verde. Uma seta puxada da data até a parte inferior do calendário apontava uma frase: “O ÚLTIMO DIA”. Justamente hoje. Mas porque último dia? Último dia de que? Perguntei atônico. Lembrei que procurava respostas para o mistério da mulher até então apelidada de Sara, no entanto saí de lá mais confuso ainda.
Meses depois, minhas dúvidas continuavam e Sara não aparecera, ela nem existia mais. Entediado com as perguntas sem respostas, liguei a televisão de casa, tentando recatar todo este enredo. Mas ainda existia uma surpresa a perfurar meus olhos. Passei alguns canais até chegar a uma entrevista. Por alguma razão, que só depois entendi, tive vontade de parar por um momento e assistir o apresentador chamar a escritora mais lida nos últimos meses. E acreditem, era VERONIKA KEROLAINE. Desde então, percebi estar perdendo tempo com a vida. Percebi também que Sara: uma mulher que catava lixo para alimentar os cães abandonados pelos seus donos era na verdade muito esperta, intelectual, cheia de sonhos e de sensibilidades. Algo que eu perdi, enquanto olhava e olhava, a velha Sara.
Escrito por Antonielson Sousa
04 de novembro de 2010

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